Porque devemos acreditar nas utopias

Historicamente, as lutas revolucionárias sempre foram vistas sob uma luz particularmente duvidosa ou surrealista. Toda e qualquer revolução na história teve que trabalhar com a sociedade de forma implacável e coesa, para convencer o poder decisivo do mundo de que vale a pena lutar por sua ideia. Assim, esse apoio da sociedade sempre determinou a força de uma revolução. Um não-exemplo mais recente disso foram as eleições nos EUA, onde Trump, que bloqueou seus ouvidos às demandas das pessoas por saúde decente, oportunidades econômicas – ou mesmo um governo não racista – até perder as eleições. Depois de perder as eleições, Trump procurou se abrigar na consciência do povo alegando que seus votos foram roubados e que ele foi enganado.

Não é de estranhar que as forças conservadoras dos regimes ditatoriais queiram manter os seus privilégios e, por isso, façam anti-propaganda contra os que se dedicam à mudança do sistema vigente. Isso ficou evidente no exemplo do nobre clero que propagou ao povo que o Rei era Deus na terra, e por isso sua palavra era a final e todos deveriam aceitá-la, por exemplo. Assim, diferentes regimes opressores surgiram e desapareceram ao longo de nossa história recente. Uma coisa que nunca mudou, porém, é a classe dos oprimidos versus os opressores.

Como sociedade, os povos da Mesopotâmia sempre resistiram à dominação e ao novo conceito de civilização que vinha sendo criado pelos estados dos primeiros grandes impérios (por exemplo, sumério, babilônico, assírio, persa). A mentalidade de estado foi responsável pela ascensão do homem-guerreiro sendo controlado pelo homem mais velho, dando origem à espiral patriarcal de violência e menosprezo. Com o tempo, essa violência levou à entrega total e à escravização da mulher.

Utopia segundo o dicionário:

“O que está no reino do inatingível; que tende a não se concretizar; quimera, sonho; fantasia.”

Provavelmente não foi uma nem duas vezes que você ouviu de um colega ou familiar que acreditar em utopias é contraproducente. Geralmente é descrito como algo que o tira da “realidade” ou leva à fantasia. Infelizmente, isso é descrito como uma qualidade negativa. Mas por que gostamos de mergulhar em tais pensamentos? Por que, especialmente na juventude, tendemos a acreditar no impossível? Por que os jovens são levados a acreditar que esses pensamentos e sentimentos são uma fase temporária da vida, ou que o tempo os ensinará a ser realistas e equilibrados? Será coincidência que ao longo da história a juventude sempre esteve no centro das revoluções? Marx diz que “as revoluções são a locomotiva da história”. Ele também poderia ter acrescentado que a juventude é o combustível desta locomotiva! Ou é escapismo?

Dentro da realidade da modernidade capitalista existem dois caminhos subconscientes para a juventude: Ou aceitam a vida fria e feia que lhes é imposta e vivem uma vida alienada, definhando por valores superficiais; ou decidem sentir e questionar-se sobre a realidade preocupante que nos rodeia.

Distopia segundo o dicionário:

“Lugar hipotético onde se vive sob sistemas opressores e autoritários de privação, perda ou desespero; antiutopia”.

As distopias são bem conhecidas no mundo de Hollywood que constantemente desenvolve narrativas ficcionais de sistemas distópicos onde o absurdo é o normal, onde as pessoas são descartáveis, os tiranos são os donos do mundo, a tecnologia controla os seres humanos, etc. O renomado “Black Mirror ” é um bom exemplo de mundo distópico, assim como a franquia “Jogos Vorazes” ou “Matrix”. À medida que a lista avança, começamos a nos perguntar por que esses filmes tendem a atrair tanta atenção dos jovens.

Por que tais filmes são geralmente narrados como críticas à realidade, seja ela própria ou da humanidade como um todo? A verdade é que com os avanços da revolução tecnológica e a normalização e aceitação da mentalidade capitalista, já vivemos há muito tempo num mundo distópico… o mundo são pessoas vivendo de acordo com sua própria verdade. A Moral e a Ética da sociedade tem sido constantemente atacada, e o pior de tudo, esses ataques são feitos por aqueles que afirmam estar agindo em nome dessa mesma moral e ética.

Um exemplo para contextualizar claramente o absurdo que a vida se tornou na modernidade capitalista é o fato de que a China está tentando criar uma sociedade “moral” por meio de um sistema de pontos e vigilância social completa. Todo cidadão na China recebe um cartão de identidade eletrônico obrigatório a partir dos 16 anos, no qual todos os dados pessoais e importantes são armazenados. Esses dados são então armazenados em um enorme dispositivo conectado em rede com todas as autoridades possíveis. Essa tecnologia usa um modelo de ponto, para elogiar os “bons cidadãos” de acordo com os termos definidos pelo governo chinês. Enquanto pontos são adicionados para “bons cidadãos”, pontos são deduzidos de “maus cidadãos”.

Aplicativo que mede pontos de um “cidadão de bem”

Exemplos de ser um “bom cidadão” incluem doar sangue, coletar lixo ou ajudar os idosos a atravessar a rua. Tais atos acabam por permitir que um cidadão ganhe pontos, o que pode significar que eles são recompensados com tempos de espera mais curtos em hospitais, acesso prioritário a universidades ou escolas, etc. música no transporte público, não visita seus pais com frequência, rouba, joga muito no computador, etc.

Mas não é preciso buscar um exemplo distópico dessa magnitude, a cada dia a sociedade está cercada e envolvida em relações virtuais desenvolvidas pelo ‘avanço tecnológico’ que estão nos afastando daquilo que nos torna humanos em primeiro lugar. Da mesma forma que a revolução industrial contemporânea acabou com a força de trabalho de milhões de trabalhadores que foram substituídos por máquinas e abandonados à margem da sociedade, a nova revolução tecnológica apresenta o mesmo risco. No entanto, desta vez o foco e objetivo não é a força de trabalho prática, mas a força de trabalho intelectual… ser usado pelo público em geral 50 anos antes de nós.

As polêmicas envolvendo o desenvolvimento da arte pelo uso da IA e agora, textos, livros, poemas, análise de dados, etc., colocam em xeque nosso papel como humanos e nosso maior patrimônio natural, que é nosso pensamento crítico. Em uma velocidade extravagante e perigosa, a raça humana está abrindo mão do que os torna humanos em si, abrindo mão de criticar, repensar, se autoquestionar e ‘fritar os neurônios’ para dar lugar a uma mente artificial que responde perguntas e resolve problemas prontos. Se essas tecnologias estivessem sendo utilizadas para o desenvolvimento da sociedade, para as necessidades humanas de saúde, moradia, transporte, fome e tantos outros problemas, seria algo bem-vindo e um importante avanço em nossa história. Porém, é claro que essas tecnologias produzidas pela modernidade capitalista estão a serviço de quem está no poder, de quem tudo faz para controlá-lo e que claramente está sendo usado justamente para a destruição da natureza, da sociedade e do espírito crítico.

Geoffrey Hinton, um dos pioneiros no desenvolvimento da Inteligência Artificial, demitiu-se da Google para poder alertar mais livremente sobre os perigos desta tecnologia. Muitas vezes referido como “o padrinho” da IA, Hinton afirmou que, aos 75 anos, agora se arrepende de ter dedicado sua carreira a esse assunto. “Consolo-me com a desculpa normal: se não fosse eu, outro o teria feito”. A sua voz de alarme junta-se à de outros especialistas que manifestaram preocupações nos últimos meses, sobretudo após o lançamento de produtos de texto como o já popular ChatGPt e as grandes apostas que os conglomerados tecnológicos estão a fazer nesta área. A curto prazo, este especialista teme que a internet seja inundada por textos, fotos e vídeos falsos e que os cidadãos não consigam distinguir o que é real, mas também que estas tecnologias possam substituir muitos trabalhadores e, a longo prazo, mesmo representam uma ameaça para a humanidade.

Os países europeus estão se aproximando rapidamente, com políticas de assimilação mais suave, para criar uma distorção entre as realidades. Vivendo sob constante vigilância mas tendo uma visão mais estreita que um cavalo com antolhos, as pessoas já normalizam a exploração de quem não é visto – uma realidade que subjuga as mulheres desde o mais pessoal ao mais sociável e as agride a todo momento. Na realidade de hoje na Europa, a destruição aleatória da natureza realmente não preocupa as pessoas, desde que as árvores em seu jardim ainda estejam de pé. A vida humana também não tem valor, quando comparada ao lucro econômico.

Seja nas mãos de uma empresa multinacional e multimilionária, ou de um cidadão comum que acredita estar vivendo sua própria realidade e vida humilde, uma abordagem individualista na sociedade certamente quebrará a espinha dorsal da Europa.

 

O livro Realismo Capitalista de Mark Fisher, autor que se suicidou por sofrer com o tema que ele mesmo descreve em sua obra – a depressão contemporânea que é um dos piores males que assola nossa sociedade, tem sua origem justamente na realidade virtual que envolve nos e engana 24 horas por dia – como o capitalismo chegou ao ponto de realizar seus projetos inumanos de força discrepante e clara, mas não causa mais comoção e reação na sociedade porque é visto como a única alternativa, a realidade que nos cerca .

Rêber APO, Abdullah Ocalan, apontou em seu terceiro livro do Manifesto por uma Civilização Democrática sobre os mesmos perigos e a forma como a modernidade capitalista está se organizando e avançando. Porém, diferentemente da obra de Fisher e de outros ‘anticapitalistas’, Rêber APO apresenta a solução do problema na construção da Modernidade Democrática, a partir da prática do Confederalismo Democrático – já vivido e vivenciado no Curdistão, que tem como pilares a Libertação das Mulheres, Ecologia e Democracia Direta. Só a construção de uma alternativa socialista e anticapitalista pode salvar a humanidade.

Como diz Rêber APO: “A insistência no socialismo é a insistência na humanidade”