Empoderamento Ou Promoção Do Patriarcado?

Recentemente Anitta chamou atenção ao vazarem cenas do seu novo clipe onde a cantora aparece ‘realizando’ sexo oral nas vielas de uma comunidade carioca. Não é de hoje que o debate em torno do tema da sensualidade/sexualidade na arte é algo controverso no sentido de buscar qual seu real objetivo e suas consequências na sociedade. A linha do feminismo liberal defende a ideia de que utilizar-se da mentalidade de nossa realidade e os esteriótipos criados ao redor do corpo feminino para gerar lucro e fama (mesmo que para um indivíduo somente), é uma forma de empoderamento feminino na atual conjuntura do mundo globalizado. Evidentemente, demais linhas dentro das correntes feministas não corroboram tal argumento justamente porque se trata de uma visão individualista, a qual coloca o indivíduo em primeiro plano e ignora as consequências do seu impacto na sociedade.

 

Nesta mesma semana, uma outra cantora que gera polêmica com suas letras e shows, foi tema de debates e discussões quando um vídeo foi postado na internet no qual a cantora em questão é vítima de abuso durante seu próprio show (o qual é conhecido justamente por seu teor sexual) – tais cenas chegaram a se repercutir fora do Brasil em redes digitais como twitter, reddit e outras com títulos como “mais um dia normal no Brasil” – “Just another day in Brazil”

Não acho que falar de sexo numa canção seja o problema. O problema são as nossas relações, não sabemos fazer sexo e fazer amor sem que isso seja consumido de acordo com critérios patriarcais. Por isso, a felação, por exemplo, não é um problema em si. O problema é porquê, a quem e como se mostra o sexo. Na maior parte dos videoclips deste género, as relações são mostradas como algo que deve ser tomado como garantido, como um processo extremamente selvagem e violento. Toda a parte romântica, gentil e respeitosa é enterrada pelas próprias mulheres, sedentas daquilo a que chamam liberdade sexual, longe de todos os limites e reflexões sobre o patriarcado e o facto de elas próprias alimentarem essas coisas. As artistas feministas liberais nunca serão a vanguarda das jovens e da sua libertação, porque tudo o que fazem é reproduzir o que os homens esperam delas. Sexo. Se tomarmos a dança, e o twerking em particular, e reconhecermos o seu carácter curatorial, tradicional e histórico, é o exemplo mais convincente da emancipação dos corpos das mulheres, por elas, PARA elas.

Hoje, o twerking é utilizado para atrair a atenção dos homens e convidá-los para o ato sexual. Ao tornarem-se objectos sexuais e sexualizados, as mulheres não têm uma única oportunidade de se emanciparem verdadeiramente das relações patriarcais. Devem, em primeiro lugar, devolver aos seus corpos a sua dimensão sagrada e amarem-se verdadeiramente, sem precisarem de um homem para as lembrar que são frescas. Falar de sexo numa canção será problemático enquanto a nossa visão dos corpos e do seu consumo não mudar.

Mas na verdade, entre nós, se ouvirmos com uma atitude suficientemente desconstruída não nos fará muito mal, o problema é também quem ouve e não está preparado para politizar, criticar e analisar o que ouve e entende.

A MENTALIDADE PATRIARCAL E A SEXUALIZAÇÃO DO CORPO FEMININO

 

Estamos inseridos numa realidade a qual se hoje se digitarmos “bombeira” no google ao contraponto de digitarmos “bombeiro”, a imagem que aparecerá será de uma mulher vestida com fantasia sexual de bombeira enquanto ao homem aparecerá um profissional da área. A mentalidade patriarcal é presente na civilização desde suas origens 5 mil anos atrás, no período o qual surgem as cidades-estado e a hierarquia – justamente a partir do controle e “housewifesation” das mulheres, as quais perdem seu lugar de destaque na sociedade e passam a ser dominadas pelo homem e os líderes espirituais. As imagens de Deusas são substituídas por imagens de Deuses homens e com isso se inicia o processo de formação das civilizações até o ponto ao qual vivemos hoje. Essa ‘normalização’ da ideia do corpo feminino padrão, se reproduz em diversas formas, especialmente em seu período moderno. Desde propagandas de roupas, as famosas propagandas sexistas de cerveja, com a indústria imoral pornográfica até chegar nas mídias digitais.

 

 

A arte é mais uma das linhas as quais tais representações e entendimentos se demonstram e cabe a nós refletir qual é o papel da arte em si. Reproduzir tal mentalidade ou então buscar desconstruí-la de forma radical e crítica? A hipersexualização do corpo feminino não se apresenta somente nas canções de Anitta, Luísa Sonza e tantas e tantos outras. Assim como não se limita ao ritmo de funk e pop, tais letras com uma mentalidade sexualizada enrustida com a cultura do estupro, podem ser notadas também no country, no “agro-pop” e sertanejo, por exemplo. Além disso a América Latina, e em especial o Brasil, é conhecido mundialmente por “futebol e mulheres” – uma fama a qual é apreciada por uma boa parcela da sociedade brasileira. Sem querer prolongar o texto e sem buscar aprofundar nos diversos pontos de reflexão que se abrem a partir disto, cabe a nós enquanto sociedade, refletirmos que tipos de consequências tais representações criam na mente de nossa própria sociedade e daqueles que veem de fora.

 

Além da xenofobia enrustida em tais casos de abuso, são incontáveis os casos em que brasileiras são abusadas sexualmente mundo à fora em baladas por homens que reproduzem a mentalidade patriarcal misógina a qual reduz o corpo feminino a um simples objeto de prazer porque “ela é brasileira”. Reduzir os casos de abuso sexual a somente a hipersexualização da sociedade também não é correto, a questão é refletir que tipo de mensagem está se passando a toda uma geração de jovens e especialmente jovens mulheres as quais encaram com normalidade cenas de libertinagem sendo difundidas como “liberdade sexual.” Além disto, no final das contas, tudo se resume ao fato de indivíduos estarem buscando fama, dinheiro e sucesso em suas carreiras. O tema é muito mais complexo e merece muito mais leitura sob tal, até porque essa mentalidade se reproduz também em animes, video-games, nas redes digitais como um todo, séries e filmes.

 

Compreender que o sistema da modernidade capitalista se utiliza desses mecanismos para manter seu controle sob a sociedade e a afastar da linha moral e ética das raízes da humanidade é crucial quando se busca construir uma nova realidade, um novo mundo. Hoje, as forças chamadas de ‘progressistas’ constantemente caem nas armadilhas e falácias do liberalismo e seus discursos, que em suma podem parecer conter um apoio popular mas na realidade somente reproduzem os interesses daqueles que detém o poder.

 

O SÉCULO 21 SERÁ O SÉCULO DA REVOLUÇÃO DAS MULHERES

 

Entendendo de que sem a libertação das mulheres jamais será possível a libertação da sociedade, compreender com profundidade a luta das mulheres, seus métodos, entendimentos e frontes é algo crucial. Hoje, no Curdistão, as mulheres estão levando a cabo uma Revolução social a qual já se tornou exemplo para todo o mundo. Recentemente houve a Segunda Conferencia Internacional de Mulheres onde 800 delegadas de 40 países participaram sob o tema “Nossa Revolução: Liberando a vida.” Sob tais perspectivas os trabalhos de Jineoljî (ciência das mulheres) se desenvolve desde 2010 dentro dessa Revolução e tem muito a contribuir com entendimentos e leituras das construções sociais as quais nos cercam e oprimem as mulheres por milhares de anos. Assim como analisar e criticar com precisão posturas as quais colaboram para a manutenção de tal mentalidade e que são repercutidas pela indústria cultural.

 

 

Na civilização capitalista, somos levados a acreditar em uma liberdade que só pode ocorrer dentro dos limites do sistema capitalista com suas limitações e regras pré-fabricadas. É realmente livre para escolher um dos muitos caminhos pré-determinados? E o que significa liberdade se for apenas a liberdade dos indivíduos baseada na opressão dos outros? Ou é apenas a liberdade de escolher como se distrair da falta de sentido e insignificância na própria vida e o que pode ser consumido por ela? Em Rojava a democracia é vivida no sentido mais verdadeiro da palavra. O autogoverno implica a organização de toda a sociedade, de todos os grupos étnicos e religiosos, para decidir sobre seus próprios interesses de forma autodeterminada. A responsabilidade e o poder sobre decisões que afetam a sociedade não é simplesmente entregue nas urnas a cada 4 anos. A questão da libertação de gênero também é respondida na Rojava. Com base na libertação da mulher, toda a sociedade é libertada, as mulheres decidem autonomamente sobre si mesmas e se tornam pioneiras da libertação da sociedade. O que nos trouxe a igualdade liberal nos países capitalistas? Nada, exceto que exigimos a mesma exploração e posição que os homens, mas nos é negada nossa própria identidade livre, baseada em nossa história coletiva como mulheres” (Revista Lêgerîn, n.2)

 

 

 

 

Uma pequena obra de arte para gerar uma breve reflexão a que ponto chegamos enquanto humanidade.

 

Quem é uma pessoa bonita? O que é o que vale a pena e merece ser amado? Qual é a identidade e a personalidade que mais deve ser amada? Quem possui atitudes que conduzem ao amor? Devemos ser capazes de buscar, revelar e desenvolver a beleza e o que é mais amoroso. Sua razão para permanecer nestas fileiras é a capacidade de ser uma fonte de amor e beleza.” (Abdullah Öcalan)