Civak (Sociedade) X Şaristanî (Civilização)

Os 50 anos de luta revolucionária no Curdistão desenvolvida por Rêber APO e o PKK, passou por diferentes processos de análises e mudanças estratégicas para adequar-se a realidade da necessidade do Curdistão e do povo. Dentre esses processos, o paradigma da Nação Democrática apresentado por Rêber APO é essencial para a compreensão e práxis revolucionária em todo o território, além de ter se tornado um exemplo para diferentes lutas anti-capitalistas de povos oprimidos ao redor do mundo.

Compreender os conceitos apresentados nos textos do “Manifesto por uma Civilização Democrática” é algo essencial. O primeiro passo dado por Rêber APO em seus textos é abordar a história da humanidade e da civilização e deixar claro para os leitores de que civilização e sociedade não são sinônimos. Rêber APO diz:

A sociedade hierárquica representava o elo intermediário entre a sociedade natural e a sociedade estatista baseada em classes. Uma característica típica desta época era que tanto a autoridade como a fidelidade militar estavam vinculadas a uma pessoa específica. A subsequente institucionalização da autoridade implica uma mudança qualitativa. O Estado era basicamente uma autoridade que ganhou continuidade pela sua institucionalização. Embora o Estado seja possivelmente o instrumento mais perigoso da história, continua a ser um dos menos compreendidos. A cultura que contém e a diversidade dos interesses que realiza desempenham um papel decisivo. (…) Pode ser útil conceber o Estado como uma “sociedade dentro da sociedade” ou como uma segunda sociedade dentro da primeira sociedade ou, dito de outra forma, a sociedade superior da sociedade inferior. Um segundo pressuposto básico útil é que o Estado, como conceito e como instituição, fragmenta a sociedade inferior e tem continuidade sobre ela. Uma suposição complementar é que o Estado não é apenas uma forma arbitrária de autoridade, mas é fundamentalmente uma autoridade político-militar.

Quando Rêbertî fala da sociedade natural, está tratando da sociedade original, os povos originários e suas formas de organização social comunalistas, centradas na imagem da mulher e da cultura das Deusas, a forma a qual a sociedade veio a se desenvolver naturalmente há milênios de anos atrás…foi com o advento do papel do shamanismo, da união entre o homem velho e o shamam que uma nova ordem social foi instaurada a partir do momento que a hierarquia se estabeleceu e se institucionalizou com o papel dos Zigurates. Esse foi início da exploração do homem sob a mulher e a formação da mentalidade patriarcal, base para a formação do estado e a mentalidade capitalista.

A organização social do tipo clã se espalhou no tempo e no espaço, ganhando gradativamente diversidade e aumentando em número. Com o tempo, esta comunidade cresceu e aperfeiçoou a sua identidade em torno da mulher-mãe. No Neolítico, a mulher-mãe assumiu a liderança no desenvolvimento da ordem doméstica. Nesse sistema, as mulheres cuidavam da alimentação, do vestuário e de outros itens de uso diário. Através das observações realizadas, a mulher adquiriu conhecimento e alcançou a posição de “mulher sábia”. (…) Provavelmente havia uma certa insatisfação entre os homens naquela época. Havia ciúme e raiva das crianças que se reuniam em torno da mulher-mãe e dos homens que recebiam mais atenção da mulher e a apoiavam. Na verdade, um número significativo de homens estava, obviamente, distante deste sistema. (…) Esta contradição foi inicialmente insubstancial, mas ao longo do tempo desenvolveu-se gradualmente. Os desenvolvimentos na caça não só aumentaram a capacidade de luta dos homens, mas também o seu conhecimento. Os velhos excluídos tendiam a desenvolver uma ideologia patriarcal. A religião xamânica mostra esta tendência de uma forma particularmente marcante. Os xamãs eram algo como o protótipo do sacerdote masculino. Trabalharam sistematicamente para desenvolver um contra-movimento e uma ordem interna destinada a minar as mulheres. (…) A emergência da autoridade e da hierarquia, mesmo antes do desenvolvimento da sociedade de classes, representa um dos pontos de viragem mais importantes da história. Esta autoridade e hierarquia eram qualitativamente distintas da cultura da mulher-mãe.

Rêbertî aponta o acontecimento histórico do desenvolvimento do patriarcado e da hierarquia como a primeira ruptura sexual e tendo isto como base, desenvolveu todo o paradigma revolucionário da Nação Democrática. Reconhecendo que a origem do estado está atrelada diretamente à hierarquia e ao patriarcado, Rêbertî tem como fator principal da necessidade revolucionária a libertação das mulheres e diz: “Enquanto as mulheres não forem livres, a sociedade não será livre.” Essa é a principal mudança no paradigma de Rêbertî e das demais lutas revolucionárias ao redor do globo, o foco da contradição não é mais a classe a luta de classes, mas sim a luta da liberdade das mulheres. Uma vez que isto também está atrelado a luta de classes em si.

A distinção crucial que Rêber APO realiza entre a sociedade e a civilização é de que a sociedade se trata de um fator natural da característica humana, um desenvolvimento histórico o qual está diretamente relacionado com a forma de nos relacionarmos e existirmos enquanto espécie. Diferentemente dos pensadores da mentalidade liberal, individualista e patrimonialista, Rêbertî aponta que as características humanas são comunais, fraternais, humildes e etc. Foi justamente o desenvolvimento da civilização que construiu e formou uma mentalidade dissidente da nossa própria natureza. É possível notar que no período da exploração colonialista e imperialista européia do século 16, os europeus taxavam as demais sociedades de territórios diversos como “bárbaros”, “selvagens”, “não civilizados”, da mesma forma a qual os primeiros grandes impérios se acercaram de demais povos e tradições em seus períodos expansionistas como por exemplo o acercamento do império romano aos povos celtas, germânicos e demais povos existentes naquele território.

Foi sob o nome da civilização que o colonialismo e o imperialismo se desenvolveu e pelo método da guerra e opressão se fez presente. São incontáveis os casos de genocídios e massacres cometidos por grandes impérios e estados sob o nome da expansão civilizatória.

Os sistemas civilizacionais com Estados produzem depressões econômicas pela sua própria estrutura. Estas depressões não são eventos incidentais que surgem de tempos em tempos como resultado da forma como os fatores internos e externos atuam ao longo do tempo e do espaço. O próprio sistema produz continuamente depressões (culminando em crises quando extremas). A lógica da depressão é muito simples: o poder e, mais formalmente, as classes estatais são estabelecidas sobre a mais-valia social e a mais-valia apreendidas. Devido às suas estruturas armadas organizadas, estas classes, que pairam acima da sociedade, tendem a crescer constantemente. No entanto, as pessoas que compõem o segmento laboral da sociedade mal ganham a vida e morrem prematuramente de várias doenças e em guerras, com a sua população a diminuir em comparação com a das classes estatais. Existem duas saídas para a crise. Primeiro, a força que destrói os seus rivais nas crescentes guerras hegemônicas emerge como a nova hegemonia. Este novo poder hegemônico apodera-se das ações dos seus rivais, esmagando-os no processo e superando a crise – pelo menos relativamente, e durante algum tempo – até surgirem novos rivais. A segunda opção, muitas vezes interligada com a primeira, é a produção eficiente e a aplicação de técnicas comerciais e industriais para aumentar a produção.

Um sistema hegemônico que aumente a sua produção pode garantir um período de prosperidade em vez de um período de depressão. As civilizações antigas, por exemplo, experimentaram longos períodos de depressão intercalados com prolongados períodos de estabilidade. Houve muitas crises em intervalos que variaram de duzentos a mil anos. Geralmente, cada grande período de crise resultou numa mudança dinástica e numa mudança do centro. O poder e o Estado-nação, que denotam a integração dos monopólios de exploração econômica e da hegemonia ideológica no aparelho de poder, tornaram-se tudo, reduzindo a sociedade a nada no processo. Esta é a essência do que chamamos de crise de poder. O sistema capitalista é a força que induz esta crise. A monstruosamente alargada classe média e os monopólios de capital e as redes capitalistas que não têm qualquer inibição em usar a economia para o seu próprio crescimento só poderão sobreviver se o poder assumir a forma do Estado-nação. Chamamos isso de bloqueio do sistema. Assim, chegar ao poder denota na verdade a situação para além da crise.

Devemos dar uma atenção especial a esse trecho do texto: O poder e o Estado-nação, que denotam a integração dos monopólios de exploração econômica e da hegemonia ideológica no aparelho de poder, tornaram-se tudo, reduzindo a sociedade a nada no processo.

Fica claro que para Rêbertî, sociedade e civilização são antagônicos entre si. A crise de poder a qual o capitalismo tem como base para a sustentação do seu sistema é baseado justamente na subjugação das sociedades pela civilização e sua mentalidade hierárquica, patriarcal, centralista e patrimonialista na qual foi comprimida na imagem do Estado-Nação em seu período contemporâneo.

Sendo assim, a luta pela Nação Democrática, se trata de reconectar com as origens sociais da natureza humana. Desenvolver um sistema o qual tem como objetivo criar uma vida comunal, equitativa e livre. Para isto é preciso conhecer a história da humanidade, da formação da civilização e sua mentalidade e da realidade capitalista e seu sistema hegemônico.

Portanto, podemos definir democracia como o autogoverno de uma sociedade não estatal. Democracia é governança que é não estado; é o poder das comunidades para se governarem sem o estado. Ao contrário da crença popular, desde a sua formação a sociedade humana experimentou a democracia mais do que experimentou o estado. (…) A democracia plena é apatridia. Completo a soberania do Estado é a negação da democracia. Os Estados só podem ser derrubado pelos Estados; a democracia não derruba o Estado; isto só pode preparar o caminho para um Estado mais novo, como fez o socialismo real. A função fundamental da democracia torna-se evidente nesta maneira. Só pode aumentar as oportunidades de liberdade e igualdade, restringindo o Estado, tornando-o menor e aparando seu polvo como tentáculos sobre a sociedade. Há necessidade de uma teoria, programa, estratégia e tácticas socialistas democráticas não orientadas para o Estado. Se a autocrítica se desenvolver neste contexto, será significativa. Caso contrário, os métodos antigos persistirão sob o disfarce do novo.